sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

"Uma Prisão Inocente"

        Tendemos a esquecer os nossos antepassados. Esquecemos que os nossos sucessos de hoje são fruto de muito trabalho e sofrimento, de alguém que um dia existiu e vive hoje em cada um dos nossos genes. Hoje faço uma homenagem aos meus avós e bisavós. Escolho um bisavô para o fazer, pois para além das memórias que passam intergeracionalmente de "boca em boca", deixou escrito um episódio da sua vida. É (não digo era porque ele ainda vive... não fisicamente) Francisco da Rosa Oliveira. Tive a sorte de o conhecer, quando em 1974, ainda com 3 anos, os meus pais vieram de Nova Iorque fazer uma visita à Ilha do Pico. Lembro-me de estar no seu colo... lembro-me daquele cachimbo... lembro-me daquela boa disposição que nunca lhe faltava... lembro-me de Francisco do Moinho. Era assim conhecido por ter sido moleiro. Lembro-me de imensas histórias que o meu pai me contava sobre ele. Lembro-me de meu pai contar que na sua infância, fazia viagens a pé e descalço com os seus irmãos, desde o Cabeço Chão até ao Mistério do Cachorro (mesmo junto ao mar- Freguesia das Bandeiras, Ilha do Pico), uma viagem de 7 ou 8 kms por estradas de pedra e "bagaço", com um saquinho de milho às costas, para que o meu bisavô o moesse naquele moinho junto ao mar (ainda existem lá, hoje, os vestígios desse moinho - Ver no Google Earth 38º33,428' N ; 28º26,115' O).
        Muitas memórias poderia aqui registar. Deixo uma... que talvez nos faça olhar para algumas grades que nos encarceram, muitas delas sem sermos responsáveis por isso (poderei dar como exemplo a mega-crise). Francisco do Moinho foi preso, por algo que não cometeu, ficando privado da liberdade, da esposa, dos filhos menores, dos amigos... até descobrirem a sua inocência. Viveu os piores momentos da sua vida. Relatou-os num livro: "Uma Prisão Inocente", que o "escreveu" (em parte) enquanto esteve preso. Na realidade não o "escreveu", pois não o sabia fazer. Não o chamaria analfabeto... pois tem um livro de quadras rimadas da sua autoria. Como é isso possível? Ter um livro sem o ter escrito? No decorrer das visitas da sua esposa à prisão e já depois disso, ia ditando aquelas quadras que lhe vinham à cabeça. A minha bisavó Rosário lá as foi escrevendo. Deixo aqui algumas dessas quadras:

"Freguesia da Bandeiras,
Ilha do Pico Açores.
Uma cena que se deu
Vou contar aos meus senhores.

Aqui vivi em solteiro,
Com o meu pai e minha mãe.
Vivia pobre e honrado
Como todos sabem bem.

E um dia por acaso
Para as Ribeiras caminhei,
Vi lá uma rapariga
E dela me enamorei.

Como é ordem do Mundo,
Lá mesmo eu fui casar
E para esta freguesia
É que viemos morar.

...

A todos peço licença,
Atenção de me escutar,
Para verem a desgraça
Que às Ribeiras fui buscar.

...

Na freguesia das Bandeiras
Fui nascido e batizado,
Mas ninguém pode fugir
Ao que Deus tem destinado.

Para tudo há um princípio
E não há que duvidar,
Como era de família
Meu sogro me veio convidar.

Para eu ir às Ribeiras
A uma festa que fazia,
Uma pronessa de coroa
Que os eu filho fazia.

...

Deus sabe o que custou
Para eu a essa festa ir,
Para aprontar os pequenos
Que não tinham que vestir.

...

Como família e juntos,
Muito contentes ficámos
E numa boa harmonia,
Todos juntos ceámos.

No dia seguinte:
Domingo do Espírito Santo.
Ai que festa bonitinha
Que eu dela gostei tanto.

Na segunda e na terça
Que Império bonitinho,
Foi feito em Santa Cruz
Deram rosquilhas e vinho.

Na quarta feira de tarde,
Fui junto com o meu cunhado,
Buscar duas sacas de farinha,
De meu sogro fui mandado.

Caminhei logo para casa
Como já cedo não era,
Quem mal não tem, mal não cuida,
O mal ninguém o espera.

...

Como estava inocente
E não me queria exaltar,
Vim para minha casa
Minha vida governar.

No dia dezoito de Junho
Para o Faial caminhei,
Fui vender umas batatas
E um pouco de farinha comprei.

E na lancha do meio dia
Para o Pico regressei
E, ao saltar para o cais,
Grande desgosto passei.

Eu estava em cima do cais
E um homem para mim a olhar,
Só me tocou no braço dizendo:
- "Faz favor de me acompanhar".

Eu olhei para o Homem
E sobressaltado fiquei,
Conheci que era polícia
Logo do caso me lembrei.

...

E neste tempo o polícia
Mostrou-se um pouco zangado,
Me disse: "Eu sei isso tudo,
Mas você está condenado".

Como eu estava inocente
Fiquei um pouco sentido,
E logo na mesma hora
Na cadeia fui metido.

...

A minha mulher quando me viu
Começou logo a chorar
E eu, por me ver na cadeia,
Nem sequer pude jantar.

...

Eu pedia a Deus do Céu,
Também à Virgem Maria,
De certo que fui ouvido
Porque Deus me socorria.

E Deus como é bondoso
Conhece as necessidades,
Prometi-lhe ir de joelhos
Da Madalena às Sete Cidades.

...

O Sr. Capitão Freitas
Que Deus lhe há-de agradecer,
Por ter um bom coração
Me mandou sempre que comer.

Das onze para o meio dia
É que me vinha o jantar,
E eu como um cão na jaula
Punha-me dentro a escutar.

Ouvia minha mulher
A sua vida a cramar,
Mas a porta estava fechada
Não lhe podia falar.

Quando a ouvia cramar
Tinha muita dó dela,
Só queria uma prisão
Que tivesse uma janela.

...

Senti os horrores do arrenego
E pensei que ia desesperar,
De joelhos para a tarimba
Outro terço fui rezar.

...

Depois pensava no meu filho Pedro
Que só três anos contava,
Das meiguices que fazia
Quando eu no colo o sentava.

Pensava em Francisco
Que então já raciocinava,
Que quando me viu preso,
Muitas lágrimas derramava.

Pensei em Maria
Que tinha ficado nas Ribeiras,
Enquanto estive preso
Nunca veio para as Bandeiras.

Pensava em minha mãe
Como estaria o seu coração,
Vendo o seu filho mais novo
Inocente na Prisão.

Pensava em minha mulher
Que anos de vida me tirou,
Dormindo fora da cadeia
Nem um instante me deixou.

A minha vida era chorar
Disso podem ter uma ideia,
Ter uma mulher e três filhos
E inocente na cadeia.

...

Enfim chegou a hora
Que eu por Deus fui ouvido,
Para não pagar um crime
Que não tinha cometido.

No dia dois de Junho
Que grande satisfação,
Quando me mandaram chamar
Para eu sair da prisão.

...

Caminhei logo depressa
Para a lancha apanhar,
Para chegar à Madalena
Para a promessa pagar.

...

Para pagar esta promessa,
Muito me vinha custando,
Tinha os joelhos desfeitos,
Mas vinha-me consolando.

Nas beiras do caminho
Muitos me esperavam,
Quer grandes, quer pequenos,
Quase todos choravam.

Cheguei ao Cabeço Chão
Ao pé do botequim,
Estavam mais de trinta homens
Todos à espera de mim.

Quando eu vi uma criança,
Era o meu filho mais moço,
Com os seus braços abertos,
Agarrou-se ao meu pescoço.

...

Com a alegria que tive
Chorei como uma criança,
Minha casa estava cheia
De toda a vizinhança.

...

Já vos estou a enfadar
Por tanta coisa dizer,
Por mim fiz o que pude
Melhor não pude fazer.

Como sou analfabeto
Melhor não pude fazer,
Sempre dou uma vaga ideia
Daquilo que queria dizer.

O meu nome é Francisco da Rosa
Por este fui batizado,
O sobrenome é Oliveira
Que de meu pai foi tirado."

in "Uma Prisão Inocente" de Francisco da Rosa Oliveira

4 comentários:

  1. Li as quadras ...nao sei quem era o sr. mas sente-se a dor em cada quadra...parabéns pelo enquadramento q fazes a todas as mensagens do teu blog.
    Elisabete Garcia Ávila

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Ah! Como conheço bem esses versos, já os li muitas vezes, e foi por a mesma razão que tu, para não esquecemos que os nossos sucessos de hoje são fruto de muito trabalho e sofrimento, de alguém que um dia existiu, alguém nosso, nossos antepassados; foi por isso que tive horas e dias a fazer o meu livro "Versos de Três Gerações", para que o meu neto nunca esquecesse, os velhos versos da sua Bis-Avó e do seu Trisavô, versos esquecidos dentro de uma gaveta. Fiz uma compilação desses versos, e acrescentei alguns meus em homenagem "aos nossos", não foi um livro editado com "pompa e circunstância", mas simplesmente feito no meu computador e editado através da magia da internet, mas existe, e mesmso embora que são pouco exemplares, eu sei que algum dia algum dos meus descendentes vão gostar de o ler.

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  4. A tia sabe muito bem recuperar a história da nossa Família, o que é um orgulho para todos nós. Para além disso herdou o dom do nosso querido avô (meu bisavô), com a escrita de versos lindos que mantém vivas todas as memórias da família. O seu livro "Versos de Três Gerações", apesar de não ter sido editado com "pompa e circunstância", está, à semelhança de "Uma Prisão Inocente", na minha lista de livros preferidos!

    Abraço

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