domingo, 25 de outubro de 2015

"Jeito" Versus Trabalho

        Admiro todas as pessoas que no seu dia-a-dia trabalham e lutam para "mudar o pedacinho de mundo que está à sua guarda". Amo todos os meus antepassados pela capacidade de sofrimento e de trabalho. Quando os meus pés tocam na lava onde brotam as minhas raízes, o meu coração ganha vida e os meus olhos deixam cair aquela lágrima que parece querer regar cada um dessas raízes. Sinto cada pedrinha de basalto negro da minha Ilha do Pico (Açores). Os meus avós, transformaram lajido de basalto em pequenas nesgas de terra produtiva. Partiram e juntaram pedra, acumularam-na em maroiços (grandes montes de pedra), juntaram os parcos pedacinhos de solo que existiam nesta ilha vulcânica, fizeram currais e canadas (muros de pedra para abrigar vinha e figueiras dos ventos e da maresia)... Plantaram... Construíram as suas casas! Durante séculos trabalharam de sol a sol para termos um Património (reconhecido pela Unesco), mas acima de tudo, para sermos quem somos.
        Ser do Pico é saber minimamente o que é um muro de pedra e conhecer técnicas de o construir.  Se não sabe o que é uma "parede dobrada", se não sabe o que é um "taipal de passagem", se não sabe o que é um "curral", se não não sabe o que é uma "canada"... se não sabe fazer parede de pedra, nunca sentirá verdadeiramente o que é ser "um Homem do Pico"! Sendo uma ilha vulcânica/sísmica, as paredes de pedra só seriam eternas se filhos e netos as reconstruíssem! Os fortes sismos desafiavam o instinto de sobrevivência... O sangue que corria nas veias de um "picaroto" teria de ser mais forte do que a lava líquida que escorria da Montanha. A teimosia humana teria de se sobrepor aos destruidores "tremores de terra" (talvez também por isso é que ser do Pico é ser teimoso)! Por tudo isso cada Pai tinha como missão ensinar cada filho a arte de colocar pedra sobre pedra e (re)construir parede! Meu Pai ensinou-me desde muito pequenino... Lembro-me da primeira grande parede que fiz (com a idade que tinha era como a "interminável" Grande Muralha da China). Tinha onze anos e a outra construtora (a minha querida irmã) tinha seis. A missão dada por meu Pai era a construção da parede "nascente" que limitava a propriedade da recém construída adega dos Arcos. Para mim era um projeto e um desafio interessantíssimo, tendo a perfeita noção que a construção daqueles 20 e tal metros de muro, me faria crescer enquanto Homem e Ser Humano. Estávamos no ano de 1982... Dentro dos nossos limites físicos, fomos "acartando" pequenas pedras e sobrepondo-as... Sem qualquer intervenção de meus pais ou de outra pessoa, construímos os 20 e tal metros de parede! Foi tão boa aquela sensação de dever cumprido! Foi tão bom ver o orgulho de meu Meu Pai e de Minha Mãe! Passados 33 anos a parede ainda vive, resistindo às intempéries e aos sismos! Dos lados Poente e Sul estão as paredes construídas pelo meu querido Pai e pelo meu querido Avô! Do lado norte (lado do Mar) está o grande desafio... Muito suor e um acumular de pedras que ano após ano a força do Mar obriga a colocar de pé!
        No Pico, com "jeito" ou "sem jeito" as paredes tinham de ser feitas e refeitas! O "jeito" só se manifesta com Trabalho". Ter "jeito" implica Trabalho árduo e "perseverante aplicação"! Ter "perfil" para algo implica forçosamente Muito Trabalho. Apenas com a Repetição, com o Treino... é que se desenvolve a ínfima percentagem de "jeito" que nasce connosco... Uns podem nascer com mais umas milésimas de talento, outros com menos uma milésimas para uma determinada competência ("skill")... mas todos conseguem concluir uma mesma tarefa com a mesma qualidade. Tudo reside no Trabalho... na Repetição da Ação... no número de vezes que Treinar a Ação e na vontade em querer atingir a mesma meta ou o mesmo objetivo (variável de pessoa para pessoa). Quem passar hoje junto à adega da minha Família no local dos Arcos (Freguesia de Santa Luzia-Ilha do Pico-Açores) dirá que quem fez aquele muro a "nascente" não tinha "jeito nenhum", especialmente se o comparar com os muros "poente" e "sul"! Se eu e a minha irmã construíssemos o mesmo muro hoje, não tenho qualquer dúvida que quem passasse não repararia nas diferenças entre as paredes (a não ser os especialistas)! Crescemos e ganhámos força de braços... Poderíamos utilizar pedras maiores... Mas, a principal razão está na experiência... Depois disso, construí muita parede com meu Pai, com o meu Mestre... Pela idade que tem e pela experiência de vida, pelo Dedicação e Trabalho que continua a valorizar, será sempre o meu Mestre... Qualquer parede que fizer será sempre melhor que a minha... Continuarei a ser seu eterno aprendiz...
        Admiro Beethoven pela sua Música, mas sobretudo pela lição de vida que deu a todos nós. A música fazia parte da sua vida, até ao dia em que perdeu a audição! Poderia ter desistido de viver! Não ter a capacidade para ouvir a magia da melodia de uma música, poderia ser condição para desistir... Todo o seu talento para a música desapareceria para sempre... Beethoven, não desistiu... Dedilhava as notas que passavam na sua Mente Brilhante, mas não as ouvia.. Um dia, enquanto repousava sua cabeça sobre o piano e tocava, sentiu as vibrações de cada nota. Com muito trabalho e "perseverante aplicação" aprendeu a "Sentir" a Música que tocava.... Lutou... Trabalhou... Treinou... Suou... Dias e dias! Hoje é um dos grandes génios eternos da Música! Os seus 2% de talento nunca seriam conhecidos, se não fossem os 98% de "perseverante aplicação" e Trabalho.
      Em Educação e na "vida dos tempos modernos" o valor do Trabalho é completamente deturpado e desrespeitado. Por exemplo, para aqueles alunos que apresentam necessidades educativas especiais, que não se enquadram/adaptam a um Sistema Educativo obsoleto baseado no débito de informação e na memorização através da audição, com as mesmas linhas orientadoras do tempo da Revolução Industrial, criam-se programas que desencorajam o trabalho, facilitando-lhes a vida (para terem de trabalhar menos). São enganados, pois dizem-lhes que atingirão as mesmas metas... Retiram-lhes ferramentas, achando que não têm capacidade para as usar! Algum carpinteiro será bom carpinteiro se lhe retirarem  martelo e o serrote? Será tão bom como outro carpinteiro com essas ferramentas? O que seria de Beethoven se lhe tivessem retirado o piano quando deixou de ouvir? Tratamo-los como coitadinhos... Retiramos ferramentas em vez das ensinar a usar e de dar novas ferramentas... Não os ensinamos a amar a vida e a desenvolver os seus talentos... Retiramos a capacidade de sonhar (a todos os alunos em geral)... A capacidade de voar... O Sistema diz que é possível voar sem bater asas! Pura mentira que infelizmente os DDT ("Donos Disto Tudo") parecem fazer crer, pois esses apenas voam com o bater de asas do um Povo! Na Natureza nenhum pássaro voa com as asas de outro. Na Natureza nenhum Ser Humano sonha pela mente do próximo!
        O mesmo se passa com a profissão de Professor e com outras profissões, neste Sistema do qual fazemos parte. Então... neste nosso Portugalzinho ("inho" porque os DDT o fizeram assim) quando há alguém que cumpre com a sua missão de "mudar o pedaço de mundo que está à sua guarda" diz-se apenas "tens muito jeito" para a coisa... "Tens perfil"... Nos Estados Unidos, onde estudei e trabalhei, ouvia dos meus professores e patrão as expressões "Good Work" ou "Great Job"! A valorização do valor do trabalho era constante! Um respeito enorme por este valor! Um respeito enorme pela dignidade do Trabalho! Quem trabalha mais... ganha mais! Quem não trabalha sai... para dar lugar a outro que trabalhe (cruel, mas é a lei da natureza a funcionar), em vez de se arranjarem funções estéreis para parecer que trabalha. Quem trabalha é motivado a dar mais de si! Ter talento, jeito ou perfil é algo que se adquire ou se desenvolve com muito Trabalho e quando este está à vista de todos! Se não se vê... não houve trabalho! Numa Escola de nada serve uma planificação, ou o que está escrito numa ata ou num plano, se não tiver sido feito ou não estiver à vista de todos... e que cada aluno envolvido tenha sentido no seu coração o resultado da ação. Só assim existem verdadeiras aprendizagens! Até aqui o Sistema falha "propositadamente", enviando inspetores para ver o que está escrito, desprezando o trabalho que se vê e que cada aluno sente! Vêem-se números e esquecem-se as pessoas! É o Sistema de ... "se está escrito... está feito"... Inspeciona-se a capacidade de fingir que se trabalha e os melhores são aqueles que têm esquemas e estratagemas para manipular números e são excelentes burocratas!
        Neste país brinca-se e goza-se com o Trabalho! Inconscientemente (porque o hábito levou a isso) ou conscientemente, quando alguém nos diz "tens jeitinho", "tens perfil"... quando o que se vê é fruto de Trabalho árduo para conseguirmos atingir objetivos... é um desprezo total pelos 98% referidos por Beethoven! Diria mesmo... uma falta de respeito (consciente ou inconsciente)! Parece que quando nos elogiam com a expressão "tens jeito" quando "damos o litro", estamos a ser "enjeitados"! Prefiro que digam "fizeste merda"! Pelo menos é a prova de que fiz qualquer coisa e dá-me a oportunidade de evitar da próxima a "merda" que fiz (também só aceito esta expressão das pessoas que trabalham diariamente para cumprir com a sua missão). Uma coisa garanto... todos nascemos com mais umas milésimas ou menos uma milésimas de talento... Mas todos conseguimos atingir as mesmas metas! Apenas dependemos da nossa experiência numa determinada tarefa, do número de repetições das nossas ações para o conseguir, da força que temos em acreditar na mudança e da energia do próximo para nos motivar (sendo esta última a principal capacidade de um líder). "Eu tentei 99 vezes e falhei, mas à centésima tentativa eu consegui. Nunca desista dos seus objetivos, mesmo que esses pareçam impossíveis. A próxima tentativa pode ser a vitoriosa" (Einstein).
        Hoje em dia, o tijolo, o bloco e o betão armado e os avanços na tecnologia da construção levaram a que picarotos da minha idade e muitos jovens deixassem de aprender a construir paredes de pedra do Pico. Sentir um pouco da resiliência dos nossos antepassados, sentir o sofrimento e a dor que deu origem aquilo que somos hoje, sentir o Amor das raízes... É algo que já não se sente... Tal como a vida obrigava os meus antepassados a saber construir paredes de pedra... se todos nós fôssemos obrigados a saber construir as paredes de betão armado dos tempos modernos da casa onde dormimos... não tenho qualquer dúvida que o respeito pelo Trabalho e pelo Trabalho do próximo faria parte do nosso dia a dia! Não tenho qualquer dúvida que "cada um de nós transformaria os pedacinhos de mundo que estão à sua guarda" (Idália Sá Chaves, Universidade de Aveiro).