Um Mundo numa Batata

        Há uns anos atrás, surgiu um conflito entre dois alunos. O problema já se arrastava há várias semanas, chegando um dos alunos a trazer uma navalha, para amedrontar e/ou resolver o problema! Inspirei-me numa "parábola" que recebi uns anos antes na minha caixa de e-mail, na tentativa de aqueles alunos descobrirem as coisas belas de cada um.
        L. era um aluno emocionalmente debilitado. Ao mínimo sinal de stress, perdia a noção das coisas, partindo para uma violência "descontrolada", fosse a atirar uma tesoura a um professor, fosse o que fosse. Era acompanhado pela pedopsiquiatra.
        R. era (e é) um aluno pertencente a uma família muito pobre, com grandes dificuldades de integração social.
        Pedi-lhes que trouxessem ambos, um Kg de batatas cada. Logo aí, um deles disse, mas eu não tenho batatas e não as posso comprar. O colega disse: "Não te preocupes, eu trago dois kgs e partilho contigo". Fiquei sem palavras ...
        O desafio consistia em meter um kg de batatas em cada mochila e andarem com elas nos 3 meses seguintes. Todos os dias tinham de escrever uma frase nas batatas, que apontasse uma qualidade do colega e tinham de as mostrar em conjunto a mim. Os primeiros dias, não conseguiram mostrar as frases em conjunto. Preferiam individualmente... Era natural, apenas se habituaram a ver os defeitos de cada um e era dificílimo admitir uma qualidade perante o "adversário"! Aos poucos começaram a partilhar coisas e questões sobre o "raio das batatas" (partilharam comigo mais tarde)! "Por que raio o professor nos pede para andar com estas batatas?"; "E se deixássemos uma batata em casa, será que o professor se apercebia?"- confesso que não me apercebi.
        Aos poucos as batatas foram apodrecendo (até porque fiz um corte com o x-ato em cada batata). Nas mochilas dos alunos exalava já um cheiro que não era agradável. Já não havia muitas batatas com superfície boa para escrever qualidades sobre o colega...
        Um dia vieram os dois, no final de uma aula, mostrar as frases do dia e disseram: "Professor, não podemos mais andar com estas batatas!". Ainda faltavam uma ou duas semanas para os 3 meses. Perguntei-lhes se eram amigos. Claro que não precisava de perguntar. Aquele problema mútuo, devolvera-lhes tudo ... e fortaleceu uma relação que nunca tinha existido.
        Então expliquei-lhe a "parábola" que havia lido. "Na vida tendemos a carregar tudo o que não presta, os problemas com os outros, as mágoas ... A vida torna-se penosa. Sofremos muito. O fardo torna-se pesado... e começa a cheirar mal!"
        Perguntaram o que faziam com as batatas... pareciam que afeiçoados aquele problema... Pensei que fosse óbvio que o destino era o lixo ... Perguntei-lhes o que queriam fazer com elas... R. disse, "apetece-me a esborrachá-las". Então disse-lhes, em frente a toda a turma, que escolhessem a melhor batata e a esborrachassem em cima da minha carteira! E assim foi ... com posterior limpeza do espaço, claro!
        Coincidência ou não ... L. começou, a partir destas batatas, a ser diferente! Deixou de haver registos de episódios de violência. Começou a enfrentar os dias com um grande sorriso. Deixou de tomar a medicação, recomendada pela pedopsiquiatra (desloquei-me à consulta do L. para conhecer a evolução). O L. com muita força interior, com a ajuda do pai, dos avós, dos colegas, dos professores, da pedopsiquiatra ... conseguiu brilhar e tornar-se em mais um milagre.
        O R. conseguiu a amizade e uma das suas conquistas ... mas... continua a luta pela vida, a viver no mesmo seio sócio-económico...

        "Joguemos fora as nossas batatas ..." ou "esborrachemo-las", antes que cheirem mal!
       

Poderão ver a "parábola" original em: http://www.slideshare.net/primaquim/jogueforasuasbatatas