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sexta-feira, 16 de março de 2012

Memórias Vivas...

        Ao longo da minha curta carreira enquanto "blogger" (Pouco mais de 4 meses), tenho reavivado muitas das minhas memórias que estão guardadas algures, desde os meus tempos de infância. As melhores memórias foram aquelas em que o tempo e o espaço abraçaram a família. Amo muito toda a minha família. Amo todos os que estão entre nós. Amo todos aqueles que têm a sua inscrição na minha memória genética, mesmo os que nunca cheguei a conhecer. Cada família é uma História de Amor. Cada história está escrita nos corações de cada membro na família. Infelizmente o olho humano foi feito para tudo ver e por vezes tem muita dificuldade em ver o coração (o do próprio e o do próximo). Tende a ver o acessório e o que nada interessa para a vida! Tende a valorizar coisas e sentimentos sem interesse! Se cada um de nós fizer um "pequenito" esforço para ver a História de Amor que vai em cada um dos nossos corações, a alma reajustar-se-á ao corpo (deixando de pairar) e a vida volta a fazer sentido com verdadeiros sentimentos... com Amor!

        Hoje recebi uma mensagem de minha Tia Sãozinha. Enviou-me uma série de fotografias que me fizeram abrir o "meu livro" das "Histórias de Amor" da família e ilustram muitos dos meus "posts":

http://serounaoserverdade.blogspot.com/2012/02/magia-debaixo-da-rocha.html




 http://serounaoserverdade.blogspot.com/2011/12/uma-prisao-inocente.html



Outras fotos da História de Amor da minha Família e que ilustram muitas das minhas memórias lançadas neste Blog.







quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

NBA... "Dream Team"

   Início dos anos 40. Homens, provavelmente descendentes de famílias da antiga Flandres (Europa), formavam uma equipa que representava a freguesia das Bandeiras da ilha do Pico. Era a "NBAlferes" (como a acabei de batizar)! É incrível como naquele tempo, onde a vida parecia colocar dificuldades no dia a dia, sem infraestruturas, sem recursos... havia sempre o sonho... "que comandava cada minuto das suas vidas"! A paixão pelo desporto estava sempre presente nas poucas horas de descanso que tinham!
        Nesta foto reconheço rapidamente três irmãos Alferes (alcunha da minha família do lado do meu avô paterno): o Eduíno e o José (em baixo); e o Francisco (o segundo da esquerda para a direita - 2ª fila). Na realidade eles eram dez irmãos. Quase que daria para uma equipa de futebol onze. José, Maria, António, João, Eduíno, Francisco, Manuel (meu avô), Pedro, Rita e Júlia. Ficaram órfãos de mãe (minha bisavó Madalena) muito cedo. Meu avô tinha 7 anos e a irmã mais nova, Júlia, tinha meses. Meu bisavô também faleceu ainda eram crianças e jovens todos os seus filhos. Abraçaram a vida em conjunto e lutaram por ela. Apesar de apenas estarem entre nós, minha Tia Rita e minha Tia Júlia, hoje, a equipa Alferes nunca esteve tão forte e continua viva. Não são 3, não são 10... somos centenas! Uma equipa que representa as Bandeiras e o Cabeço de Chão em qualquer parte do Mundo! É um orgulho fazer parte desta equipa... fazer parte desta "Dream Team"!
        Meu avô faz hoje 90 anos. Há 28 que partiu para mais uma viagem. Parabéns avô e obrigado por tudo o que foste para os teus filhos e netos. Este ano não podemos soprar as velas juntos... mas o reencontro há-de chegar! 

domingo, 5 de fevereiro de 2012

A Magia "Debaixo da Rocha"

Foto Editada por Maria da Rosa
        Há uma fase da nossa vida que somos mágicos. Fazemos com que tudo aconteça... É a parte da nossa vida que somos autênticos, puros, inocentes... A partir daí, o mundo começa a ensinar-nos a colocar máscaras, a olharmos o espelho e a não gostarmos da nossa imagem. Ensina a preocuparmo-nos demasiadamente com ela. Passamos a preocuparmo-nos mais com o que os outros pensam de nós... Por vezes, enfiamos tantas máscaras que ficamos irreconhecíveis... mas lá no fundo, lá "prós" lados das aurículas e dos ventrículos habita aquela criança mágica de sempre. Esta magia de criança (poder por exemplo um dia transformar-se num aviador e sobrevoar o "Gran Canyon", ou no dia seguinte ser um médico e salvar a vida de alguém), tornam mágicos muito lugares, muitos dos sítios onde vivemos na primeira década de vida. Esses lugares tornam-se eternos na nossa memória (quem sabe até na memória genética?).
        Hoje falo de um desses lugares mágicos. Na realidade, acho que a magia de um lugar está sempre associada a alguém que partilhou esse bocadinho de mundo connosco. Agora fico confuso... será o lugar que é mágico, ou serão as pessoas que o tornam mágico! Se calhar, a beleza está dentro de nós e precisamos de alguém que nos ame e nos ache belos, para que possamos ver a nossa beleza refletida nos olhos dessa pessoa. Encontrada nossa beleza interior, a probabilidade de um lugar se tornar mágico é maior... Será???
        Enfim... já estou a dispersar... hoje falo da magia de "Debaixo da Rocha". Um lugar sem placa de identificação, um lugar que não vem o nome no mapa, um lugar que muitos desconhecem e que, para mim, é um lugar com muita história e muitas estórias... sobretudo para a minha família. Localiza-se na costa e faz fronteira entre as freguesias das Bandeiras e da Madalena, na Ilha do Pico (Açores), entre as costas do Cais de Mourato e a Formosinha. Geologicamente, para quem não sabe, é uma das zonas mais antigas da Ilha, ao contrário de toda a parte noroeste da Ilha. Conhecia todas aquelas pedrinhas desde a "Poça do Pojeiros" (onde minha avó Conceição aprendeu a nadar) até ao "Pico da Garça". Digo conhecia... porque um dia, aquando da construção da doca da Madalena (devia ter uns 12/13 anos), camiões irromperam costa dentro e limparam todos os seixos e "areúsco" (areão) que o mar demorou séculos a construir. Perdera a minha praia... Não havia, na Costa do Pico, tal extensão de "areúsco"... Destruição e desolação... Quando lá cheguei e vi aquela costa desnudada, apenas com cacos de basalto... chorei... pois acabara-se parte daquele pedacinho de céu e parte da história de uma família... Demorarão séculos até o mar voltar a reconstruir o que foi destruído!
         Peço desculpa a todos... porque hoje penso que me vou alongar... tenho tanto para dizer...
         Conheci o lugar, pela primeira vez, quando tinha 3 anos, numa visita de verão que meus pais fizeram ao Pico, quando vivíamos nos Estados Unidos. Na realidade, tive a sensação de que já havia estado naquele sítio (por isso é que acho que já estava gravado na minha memória genética). Lembro-me perfeitamente de meu tio Pedro "Alferes" (tio avô), colocar umas cordas nos tirantes daquela casa de pedra agrícola secular (hoje em ruína), pertencente à família dos Alferes (alcunha da família do meu bisavô paterno e seus filhos) e, com uma tábua, fazer um baloiço, sentar-se comigo nele e...  fazermos uma viagem em alto mar. Só quem o conheceu, sabe que com a sua alegria, conseguia transformar em magia todos os pedacinhos de mundo que partilhava. Sabem... penso que meu tio Pedro, era daqueles que nunca colocou máscaras ... aquele sorriso era puro e refletia o que lhe ia seu coração... Lembro-me de irmos, com meu pai e meu tio Pedro, às moreias "de buraco", uma pesca onde se engoda com restos de peixe, com a maré baixa, as moreias seguem o odor e lá estamos com um "bucheiro" ("tenaz" para quem não sabe usar "bucheiro") à espera de as apanhar. Entre moreias pintadas, moreões e moreias pretas... era uma linda pesca... O verão de 1974, foi determinante para estruturar a minha memória de vida... Se não tivesse vindo ao Pico nesse ano... provavelmente as minhas memórias de infância até aos 5 anos estariam diluídas numa vida rotineira vivida sempre no mesmo lugar... Não sei....
        A partir de 1977, ano que meus pais regressaram definitivamente para os Açores, a magia daquele lugar continuou a fazer parte da minha vida. Aquela costa ganhava ainda mais vida e magia com o período da baixa mar. Aquelas poças formadas pela maré baixa explodiam de vida. Búzios e conchas de todas as cores,  conchas de lapa burra, caranguejos casa alugada, estrelas do mar vermelhas, ouriços do mar e suas carcaças de cores que variavam entre o violeta e o cor de rosa, moreias à espreita, badejos, rainhas, peixe rei ... uma lista infindável de vida e cor. Adorava ir com meu pai aos polvos... Lá ia ele com uma "ingaça" (cana de bambu com um pedaço de peixe seco na ponta) de buraco em buraco, à espera de chamar a atenção de algum polvo que estivesse escondido. Tímidos... lançavam lentamente raio após raio para segurar aquele bocado de peixe... De "bucheiro" em punho, meu pai lá o retirava de água ... e já sonhávamos com aquele polvo que minha mãe iria cozinhar.
         Outro momento de magia era a altura de "correr o baixio", algo que meu pai fizera desde a sua infância. Quando os ventos estavam de noroeste e com a maré baixa, corríamos toda aquela costa à procura de "tesouros que tivessem encalhado". Por ser um extenso baixio, mar fora, e devido às correntes, é um ponto onde o Mar devolve a Terra tudo o que foi perdido ou deixado à deriva. Boías, cabos, bocados de madeira, garrafas de várias formas e feitios... tudo eram tesouros, tudo era útil... Por vezes vinham carregados de "buzano", sinais de que haviam passado meses à deriva. Em nossa casa, as cordas que tínhamos vinham quase todas daquele baixio! Infelizmente, à medida que o tempo foi passando, os tesouros foram dando lugar a lixo... muito lixo... Sinais do consumismo e do desrespeito pela Natureza...
        Naquela costa muitos barcos deram à costa... muitas eram as histórias que meu pai contava (e que os antepassados já lhe haviam contado)... de embarcações e corsários que lá encalharam. Ainda existem vestígios, quando encontramos rochas graníticas e de calcário entre os seixos. Serviam de lastro para essas embarcações... Os antigos, muitas vezes procuravam esse lastro para encontrar sílex, para poderem produzir umas faíscas que servissem de ignição para formar fogo.
        Foi nesta costa que me iniciei à caça submarina. Enquanto meu pai fazia caça submarina com meu primo Manuel do Canadá, fiquei numa poça na "Pico da Garça", com uma pequena arma tridente a apanhar uns badejos... Foi também aqui que fiz o meu primeiro mergulho noturno (meia noite), numa noite de trovoada (inconsciência da juventude).
        No início dos anos 80, meu avô, que regressara recentemente dos Estados Unidos, recuperou a sua vinha de "Debaixo da Rocha". Conseguíamos ver o amor que nutria pela terra e pelo que ela lhe dava, em cada planta que trabalhava, em cada "curral" e em cada "canada" trabalhada. Meu avô sempre foi um Homem da Terra. No Pico há os da Terra e os do Mar. Há quem ame mais o que a terra lhes dá, há quem ame mais o que mar lhes dá... Meu pai conta, que em pequenino, esperava ansiosamente pelo fim de um dia de trabalho, para correr até ao mar "Debaixo da Rocha" para pescar ou "correr o baixio". Meu pai, ao contrário de meu avô, sempre foi um Homem do Mar. Meu avô nunca foi muito dessas coisas... até ao dia que decidiu se reformar... Queria muito descansar um pouco de uma vida de trabalho, juntar os filhos... Escolheu "Debaixo da Rocha" para o fazer. Construiu na sua vinha uma pequena adega com cerca de 15 metros quadrados, com todas as condições para lá dormir (não havia energia elétrica). Decidiu que estava na hora de amar o Mar também... queria muito conhecer o prazer daqueles que o amavam. Meu pai ensinou-o a pescar... a pescar às "vejas" (espécie de peixe - na Madeira chamam bodião). Aparelhou-lhe uma cana de bambu (grande e forte cana com cerca de 6 metros)... ensinou-o a estorvar (empatar) um anzol... ensinou-o a fazer as chumbadas... ensinou-o meia dúzia de nós e voltas...
       Junto com a minha avó Conceição (a melhor contadora de histórias que conheci), lá iam no seu Datsun, passar uns dias a "Debaixo da Rocha". Viviam tão felizes... Passei muitas noites e dias com eles, naquela pequena casinha à luz de petróleo (houve uma altura que colocou uma bateria com uma lâmpada de 12 volts). Acabaram de encontrar o seu paraíso e tornaram-no no meu! Chapéu de palha, cana às costas e uma saca para apanhar caranguejo para isco. Lá ía meu avô às "vejas". Quando eu não estava, minha avó sempre o acompanhava. Quando eu estava, saíamos logo de manhã, enquanto minha avó preparava o almoço, aquele almoço de sabor intenso (adorava a pimenta jamaica que ela utilizava).
        Nunca mais me esqueço de uma dessas manhãs... fomos até à "Pedra do L'este". Disse-me: "Fica aqui sentadinho enquanto o avô apanha umas "moiras"" (caranguejo para isco). Ao meu lado deixou a cana. De repente, vi duas "vejas" vermelhas e uma "veja" parda enormes, ali mesmo à beirinha. Corri para meu avó a gritar... "Avô, avô... elas estão lá...!". Ele, nas calmas, partiu duas "moiras" a meio e deu-me para isco... O meu corpo encheu-se de adrenalina e emoção. Por um lado estava em êxtase, por outro estava apavorado, pois eu não tinha força para segurar aquela enorme cana e muito menos para trancar e puxar uma daquelas "vejas"... As "vejas" estavam ali mesmo à beirinha... coloquei os pés em dois bicos de pedra e resolvi não pegar na cana e lançar apenas o fio com o isco. Uma das "vejas" (vermelha) veio logo... dei uma "aferrada" e de repente aquele fio começou a "zunir" naquela água. Só ouvia meu avô gritar: ""Alguenta", Caim! "Alguenta" Caim!" (Expressão daquela parte da Ilha que significa "Aguenta" e Caim é uma forma de expurga de males, pois foi o "gajo" que matou seu irmão Abel). Não me veio ajudar... Com o fio a cortar os meus tenros dedos, lá consegui puxar aquela "sacrista". Mais duas, iscas, a mesma técnica... e acabei por apanhar as três "vejas" que deviam estar famintas e desejosas por uma "moira"! Foram as primeira "vejas" que pesquei na vida... Penso que meu avô, quando deixou lá a cana e me mandou ficar sentadinho, já tinha visto o filme todo... Ele quase de certeza que já tinha visto as "vejas"... Foi uma forma de me provocar... "Ele nem me veio ajudar", pensava eu... Passou todo aquele tempo a rir (adorava brincar e pregar umas partidinhas) e com a história do "alguenta"!!! Só sei que ele transformou em magia aquele meu bocadinho de vida!
        Outro dia, enquanto apanhávamos "moiras", vi um moreão enorme a espreitar de um buraco... Disse ao meu avô que se tivesse um "bucheiro" podíamos apanhá-lo. Meu avô perguntou-me: "Queres que o avô o apanhe?" Claro que queria... ainda pensei que ele tivesse outra técnica que eu não conhecesse... Meu avô foi das pessoas mais persistentes e teimosas que conheci... Decidiu meter a mão no buraco e agarrar no "moreão". Logo da primeira vez o "moreão" rasgara-lhe a pele da mão direita... estando toda ensanguentada. Disse-lhe que o "moreão" não interessava... pedi-lhe que desistisse da ideia... Ele ficou furioso com aquele "moreão"... Meteu pela 2ª vez a mão no buraco, e não sei como... agarrou-o e tirou-o... Deu-lhe tanta paulada com um pau que tinha encalhado... A verdade é que o "moreão" não se safou e lá foi apara a frigideira quando chegámos à adega.
         Para além da pesca... comungar daquela felicidade em que meus avós viviam era das coisas mais belas que podia fazer.  Minha avó tinha muita paciência para me aturar. Lembro-me um dia, arranjar uma câmara de ar enorme e uma tábuas para fazer uma jangada. Minha avó acompanhou-me até ao "Portinho" (sítio sem qualquer porto, mas que faz uma pequena enseada). Lancei aquela embarcação ao mar. Acho que passei mais tempo debaixo de água, do que em cima daquela barcaça... pois estava apenas nos testes de flutuabilidade. Minha avó não parava de dizer para eu desistir, que ainda me ia magoar... mas acho que herdei de meu avô a teimosia e a persistência. Naquele dia... apenas tive o prazer de navegar por momentos de breves segundos... Para mim já era uma vitória...
        Quando chegávamos à noite, outro momento de magia... A melhor contadora de histórias, minha avó, deliciava o meu imaginário com histórias fantástica e com uma moral... Adorava a história do "Touro Azul"... Pedia que ela as repetisse, pois apesar de já as conhecer... cada vez que as voltava a ouvir, era como se fosse a primeira, graças a este dom da minha querida avó.
        Meus avós viveram estes momentos mágicos da pós-reforma apenas durante um par de anos. Ninguém consegue imaginar a felicidade dos meus queridos avós... No Verão de 1984 foram a Nova Iorque visitar os queridos netos e filhos que lá viviam... Sem ninguém esperar... o coração de meu avô não quis que ele continuasse a viver este sonho. Nunca mais me esqueço dessa noite de agosto... Estava eu na adega dos Arcos a dormir, quando meu padrinho nos veio dar a notícia... Foi uma dor imensa, não apenas por mim... mas por toda a família que acabara de perder aquela pessoa que dedicara uma vida de amor a todos nós...
        "Debaixo da Rocha", nunca mais foi o mesma... perdera grande parte da sua magia (por isso é que eu digo que a magia está nas pessoas e não no lugar). Continuamos a ir pescar... continuamos a ir aos polvos... continuamos a ir "correr o baixio"... mas "Debaixo da Rocha" nunca mais foi o mesmo, sem aquele senhor de chapéu de palha com a cana de "vejas" às costas...
        Hoje... quando lá vou... cada pedra que ainda persiste tem uma memória... é como ir a um templo ou a um lugar sagrado, só que aquele templo... foi a família dos "Alferes" que o construiu!

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

A Transição: do "Tudo" ao "Nada"




        Nasci em 1971 na cidade de Yonkers, cerca de 15 Kms a Norte de Manhattan, Nova Iorque. Filho de pais açorianos, vim para os Açores, com seis anos, para iniciar os meus estudos de 1º Ciclo cá em Portugal. Meus pais, com 26 e 24 anos, traziam um punhado de trocos e a esperança de uma vida melhor para mim e para minha irmã (com 1 ano). 1977, Freguesia de Santa Luzia, Ilha do Pico, Açores. Não havia eletricidade, nem água canalizada. Passei do Mundo da TV Cabo para um mundo com poucos bens materiais. Mas vivia muito mais feliz…tinha liberdade! Saía à rua quando queria, não se falava em raptos e crime, as portas permaneciam sem chave… Logo desde o nascer do dia, já se ouvia o “guinchar” da madeira dos eixos dos carros de boi a rodar. Dependendo da altura do ano, poderiam vir carregados de pasto de milho, de figos para aguardente ou de pipas carregadas de uva após terem passado pelo “desbagoadoro”. Foram os últimos anos de uma atividade secular, cujas marcas (trilhos) ficaram lavradas no solo basáltico, marcas essas formadas pela passagem repetida de milhares de rodas desses carros movidos por tracção animal. São as “rigueiras” dos carros de bois, eternas como os valores da vida que passaram desde os meus antepassados, de geração em geração, e que meus pais muito bem souberam preservar e entregar aos seus filhos.

        A transição... Passei de um Mundo dos bens materiais... para um Mundo que parecia "do Nada"! Eletricidade, Água Canalizada, Casa de Banho, TV, Frigorífico, Telefone ... bens que hoje são considerados básicos e que ninguém conseguiria viver sem eles. Meus pais habituram-se a eles nos E.U.A. e conseguiram ensinar-me a viver sem eles:

- Eletricidade ---» Luz a petróleo (a incandescente de camisa era um espetáculo);

- Água Canalizada ---» Água do tanque - não havia casa no Pico que o não tivesse para aparar água das chuvas. Colocavam dois ou três peixinhos para limpar os insetos que caíssem ou se quisessem reproduzir na água;

- Casa de Banho ---» Retrete - casinha de pedra no exterior, com um banco com um ou dois (para o casal) buracos circulares, onde nos sentávamos para fazer as necessidades. Sem papel higiénico, poderíamos limpar o rabo com um "sabugo" - parte interior da maçaroca de milho depois de seca e debulhada (a técnica poderei explicar depois); Lavar... aquela celha de madeira com água quente resolvia;

- TV ---» Contacto com a Natureza - um quintal enorme com árvores e animais... nunca me hei-de esquecer daquela bezerra brava (filha da Estrela) que parecia um boi do "Rodeo" e daquele dia que me fui sentar em cima de uma vaca que estava deitada, esta levantou-se repentinamente e eu dei uma marrada no chão - influência dos filmes de cowboys que via na TV nos EUA. Pensei que ninguém tinha visto a queda, mas meu pai, sobre o balcão da "atafona" (casa com engenho de tração animal com mós em pedra para moer o milho) assitiu a tudo e deve ter se fartado de rir. Ele previra a queda, mas não correu a me avisar... sempre me deixou dar as cabeçadas... a melhor forma de ensinar... a melhor forma de aprender;

- Frigorífico ---» "Veja"(espécie de peixe) escalada - o bacalhau do Pico; Salga de carne na talha; Linguíça e torresmo de carne conservados na banha; e tudo o que a Natureza nos tinha para dar no momento: Pesca, Agricultura, Caça...;

- Telefone ---» Para quê? As pessoas viviam junto umas das outras. Comunicavam na presença ... quem estivesse longe... era esperar pelo reencontro ...

        Mil e uma memórias... mil e uma formas de viver sem os luxos de hoje... Meus pais ensinaram-me ... deram-me este guia de sobrevivência... Foram momentos de uma felicidade imensa e um Mundo por descobrir. 
        Hoje seria capaz de o fazer, viver sem os bens essenciais? Sem dúvida... Basta para tal: viver com as pessoas que mais amo e me darem o meu Mar e a Terra que me fez crescer!

        Quem nos garante que um dia não teremos de "regressar ao futuro"?



                                                                                                             Abraço