Meu Pai na "Ponta da Baixa" - Arcos 1978 |
Acabáramos de dormir poucas horas. Nestas noites tinha um sono leve... Assim que ouvia o soalho da adega a ranger, com os passos leves do meu querido pai, sabia que estava na hora de acordar!!! Horas antes, tínhamos ido apanhar caranguejo durante o fechar da noite, com a luz de um facho (lata com uma torcida de pano na ponta, embebida em petróleo que estava no seu interior), conseguindo encandear os caranguejos e apanhá-los à mão. As "moiras" (ou "mouras") serviriam para isca e os "fidalgos"(outra espécie), serviriam para a minha querida mãe fazer um belo petisco! Antes de irmos ao caranguejo, já tínhamos preparado e afinado todas as artes de pesca. O "trol" já estava iscado com metades de pequenos chicharros ("trol" - fio de pesca de nylon com cerca de 100 metros com anzóis equidistantes e que fica a espera da sua sorte no fundo do mar), as redes estavam alinhadas dentro das sacas de serapilheira, as agulheiras tinham sido verificadas, os alinhavões também, as poitas (pedras que serviram de âncora) tinham sido escolhidas, toda a palamenta fora colocada em cima da Toyota Dyna (Modelo BU15 - matrícula FN-21-22) e o motor Johnson 4cv (motor velhinho que já tinha servido para ir à pesca nas costas do Estado de Nova Iorque) preso no taipal esquerdo junto à cabine.
Devia ter os meus 14 anos (Ano de 1985)... Não sei... Nesta coisa de idades, por vezes a minha memória não deu a devida importância! Depois de umas boas sopas de leite com massa sovada, saímos dos Arcos (localidade à beira mar na freguesia de Santa Luzia - Ilha do Pico) na Toyota, para o porto da localidade do Cais de Mourato (freguesia das Bandeiras), sítio onde repousava a "Pérola do Mar", uma "chata" de madeira de criptoméria, com cavername de "cedro do mato", com pouco mais de 4 metros, mas com uma boca capaz de aguentar muito mar e 3 ou 4 homens debruçados a bombordo ou a estibordo, sem revirar. Apesar do céu limpo e da pequena brisa que vinha da montanha, ouvia-se o rebentar das ondas, sobre a baixa a oeste da rampa do porto e, a leste, fora do "Enchente" (Piscina de Maré, onde de dia a malta vai nadar). Apenas o clarão da Via Láctea nos iluminava e todas as outras estrelas que parecem desalinhadas no Céu. Dois outros clarões (intermitentes e ritmados em grupos de três) nos guiavam... o Farol da Ribeirinha na Ilha do Faial e o Farol da Ponta dos Rosais na Ilha de São Jorge. Para além de "toda" esta luz, um clarão permanente pairava sobre a cidade da Horta, como se nos chamasse à atenção sobre a sua existência.
Arrastada à mão, com a quilha a deslizar sobre os "paus"(pequenos cepos de madeira com corte onde encaixava a quilha), lá deslizámos a "Pérola do Mar", pela rampa até à beirinha de água. Motor, remos, "jája"(rolha de cortiça) e cabo colocados, lá fazíamos força para meter a lancha na água. Enquanto meu pai segurava nos remos, ía-lhe passando o resto dos arrais de pesca e palamenta, segurando sempre o cabo preso na proa. Motor a trabalhar, remos para dentro e lá saímos, no escuro da noite... Mais uma madrugada de pesca, como tantas outras... Desta vez experimentaríamos várias artes de pesca em simultâneo... A esperança era sempre a mesma!!!
Arcos 1994 - Tartaruga apanhada viva para as fotos e devolvida ao seu habitat |
Começámos por largar o "trol" em águas mais profundas, um pouco mais a Norte do local que escolhemos para pescar de alinhavão (fio 120 com um grande anzol) para a pesca de peixes de maior porte. Um pouco mais para terra, deixámos as 3 redes, sempre com o cuidado de coordenar os remos com a força da corrente da maré, de forma a que estas ficassem bem esticadas ao longo do fundo (talvez a uns 50 metros de profundidade). Entre o "trol" e as redes largámos a poita. De alinhavão na mão, aguardávamos o primeiro toque, naquele grande anzol com isca de sargo. Pouco tempo tardou... Um grande mero (talvez uns 15 ou 20 kg), um grande "crongo"(congro ou safio), moreias pintadas, moreias pretas, moreões, abróteas... Nunca em tão pouco tempo tínhamos visto tanto peixe a entrar na "Pérola do Mar"... Tínhamos sido abençoados... e agradecíamos a Deus por tamanha benção! Mas, quis o destino que essa benção nos acompanhasse até ao regresso ao Porto do Cais do Mourato. Quando o Sol já começava a espreitar lá por detrás de São Jorge, levantámos o "trol"... mais uma pescada incrível, repetindo a dose das espécies já capturadas. Dirigimo-nos para junto das redes, tirámos as agulheiras e pescámos com isca de caranguejo... Muitas foram as garoupas e bodiões que pescámos... A hora de levantar as redes aproximava-se... Não podíamos deixar o Sol subir muito no Céu, pois os "peixes porco" ao acordarem, começariam o dia a devorar o peixe que malhara nas redes. À medida que puxávamos a primeira rede, víamos o reluzir de muitos peixes... Não podíamos acreditar! Parecia que todas as "vejas" (na Madeira chamam "bodião" - o nosso "bodião" é diferente) tinham decidido passar pela rede! Estavam as 3 redes carregadinhas de "vejas", bicudas, taínhas e outros peixes... Nunca a "Pérola do Mar" tinha visto tanto peixe no seu interior... O peso era muito... Devagar, navegámos até à rampa do Cais do Mourato... Tínhamos peixe para uns bons meses para toda a família... Nunca hei-de esquecer aquela madrugada e início de manhã!!!
Aprendi com meu Pai a amar o Mar e a agradecer tudo o que ele me dá. Nos Açores e em especial na Ilha do Pico, normalmente temos os "Homens do Mar" e os "Homens da Terra"... Os "Homens do Mar" amam o Mar e procuram nesta imensidão, a sua sorte e grande parte do seu sustento... Os "Homens da Terra", amam a Terra, criam gado e predominantemente cultivam a Terra, não tendo grande ligação ao Mar. Ambos complementam-se... Ambos dão sentido àquele Mar por vezes revolto e àquela terra basáltica difícil de cultivar. Meu avô paterno sempre foi um "Homem da Terra" (apenas descobriu o Mar dois ou 3 anos antes de falecer). Levava os seus pequenos filhos (a partir dos 5/6 anos) a trabalhar a Terra de Sol a Sol. Aos poucos, meu Pai cultivou a paixão pelo Mar. Quando meu avô dava-lhe a tarefa de trabalhar 5 ou 6 "canadas" de vinha, ele lá dava o máximo, para correr até ao baixio de "Debaixo da Rocha" (http://serounaoserverdade.blogspot.pt/2012/02/magia-debaixo-da-rocha.html), e pegar na sua cana de bambu e pescar desde o "Pico da Garça" até à "Pedra do Leste". Aprendeu a ouvir o Mar. O Mar fala-nos... Diz-nos quem somos... O seu horizonte dá-nos a esperança... Meu Pai foi sempre o meu grande mestre. Todos os segredos que o Mar lhe contou, transmitiu-os aos seus filhos. Com ele, aprendi a ouvir o Mar... Aprendi a ouvir o que dizem as suas ondas quando estou junto à costa... Aprendi a ouvir o seu silêncio quando mergulho no seu seio, como se desafiasse a gravidade e voasse livremente... Aprendi a agradecer tudo o que o Mar nos dá!!! Aprendi a Amá-lo e a respeitá-lo! Descobri que grande parte da minha alma é Mar, por mais longe e distante esteja! Aprendi a ser um "Homem do Mar"! Obrigado meu Pai, por tudo o que me ensinaste!
Embucheirar de um Polvo no Baixio de "Debaixo da Rocha" |
"Debaixo da Rocha" 2001 - Eu e a minha Princesa! |
Belo texto, homem do mar! A descrição,os pormenores, o cuidado de esmiuçar o vocabulário mais técnico e a valorização das relações humanas. Parabéns, Rui.
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